Estou lendo o livro Feliz Por Nada da Martha Medeiros, é um livro de crônicas e histórias que, na sua maioria, aconteceram com autora. Ao invés de fazer uma resenha do livro todo, decidi postar as histórias que mais gostei. A primeira é Capturados, que fala dessa enorme necessidade que temos de registrar cada momento com uma foto. Espero que gostem tanto quanto eu.
“Um dos DVDs mais legais que assisti esse ano foi A vida por trás das lentes, documentário sobre a carreira da fotógrafa americana Annie Leibovitz. Tive a oportunidade, também, de ver em Paris a exposição que registra todas as fases de sua trajetória, começando pelas fotos que fazia da família, passando pela fase roqueira (quando foi a principal fotógrafa da revista Rolling Stone), até a consagração na Vanity Fair. Considero fotografia uma arte, pela capacidade que tem de capturar a alma do fotografo e revelar a nós algo que nosso olhar não consegue enxergar.
Lembro que, na minha infância, meu pai não deixava passar um único evento sem foto: Natal, aniversários, pique-niques na praia. Clik, clik, clik. Ficávamos um tempão parados, meu irão, minha mãe e eu, três estatuas sorridentes, esperando o momento de ele encontrar o melhor ângulo, o melhor foco, a melhor luz, para então clicar. Máquina digital, naquela época, era coisa da família Jetson.
Também tirei muitas fotos de minhas filhas quando eram pequenas, e guardo inúmeros registros de viagens e de alguns passeios e momentos que não acontecem todo dia. Até aí, tudo dentro de uma certa normalidade, e eu sou tendenciosa como todos: a gente acha que só a maneira como vivemos é que é normal. Mas o normal evoluiu muito de uns tempos pra cá.
Hoje, com um celular na mão, você documenta partos, tsunamis, incêndios, transas, shows e crimes cometidos bem na sua frente. Inclusive, algum crime por ventura cometido por você.
Me pergunto: se você não documentar suas experiências e emoções, elas deixam de existir? Você deixa de existir? Não, mas dá a impressão que sim.
Num surto catastrofista, imagino que em breve deletaremos da nossa memória tudo aquilo que não estiver documentado. Se eu quiser lembrar de uma viagem ou de uma festa, não conseguirei, a não ser que tenha fotografado e filmado.
O momento em que seu namorado lhe pediu em casamento, aquela caminhada que deu sozinha a beira-mar, o mergulho noturno, o café da manhã na cama enquanto viam um filme do Chaplin, a de amor no meio da estrada – se você não fotografou nada disso, será que aconteceu mesmo? Você ainda consegue lembrar da vida sem a ajuda de aparelhos?
Minhas duas ultimas viagens ao exterior foram feitas sem máquina fotográfica ou celular na bagagem. Fui e voltei sem uma única foto, o que para muitos talvez signifique “ela não foi”. Mas eu fui. A vida também acontece sem prova documentais.
Ainda Anne Leibovitz: entre seus inúmeros flagrantes constam os últimos dias de vida de seu pai e da escritora Susan Sontag, as duas pessoas que ela mais amou.
As fotos de ambos, cada um na sua hora, agonizando, estão na exposição e no DVD. Anne Leibovit é uma artista e suas lentes são seus olhos, ela não disassocia vida e trabalho, mas admito que senti, mesmo havendo consentimento dos fotografados, uma invasão na intimidade mais secreta de cada um, que é a solidão. Louvável como registro jornalístico, mas desnecessário como despedida pessoal.
Tudo isso para dizer que certas ocasiões inda me parecem suficientemente fortes para resistirem intactas na nossa lembrança, e penas nela.”